Casa

Cesar Filho
5 min readApr 22, 2024

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São os anos 90 e eu encaro os olhos de um jacaré. Árvores me rodeiam e pedras brancas e cinzas estão embaixo dos meus pés. Estou na companhia da minha irmã Carla e dos meus primos, Carol e Betinho. Somos todos crianças não-supervisionadas por adultos. Era o tipo de coisa que se podia fazer naquela época. O lagarto gigante se move devagar e entra na água enquanto o observo e calculo o tempo que ele levaria para chegar até mim e arrancar meu braço. Será que ele sabia que poderia fazer isso?

Em um canto da praça, uma barraca de madeira vendia doces e salgadinhos. Em outro, uma sorveteria trocava casquinhas por um valor razoável. Nós quatro queremos tudo. Meu primo, o então caçula, corria e não podíamos perder seu cabelo galego de vista. As pessoas pareciam saber quem nós éramos. Naquele tipo de cidade, todo mundo parecia saber quem todo mundo era. Se não soubessem, tratavam de descobrir. No coreto, contamos os piriquitis catados no chão. Mais tarde, descobriria que aquelas sementes vermelhas são venenosas. Quem poderia saber naquela época? Nós não, com certeza. Talvez minha mãe argumente que nos avisou várias vezes. Se sim, não parece ter adiantado de muita coisa.

A praça era grande. Tão grande quanto o mundo parecia ser para um bando de crianças. Cercada de casas, repleta de bancos e barracas de lanches, habitada — provavelmente de forma ilegal — por uma família de jacarés e por uma fonte com três mastros onde se hasteavam o Brasil, Alagoas e Matriz do Camaragibe. Ao redor da fonte, quatro pinheiros se erguiam para o vasto céu azul de tempo quente. Lá no fim da praça, depois dos jacarés, dos bancos, do coreto e da fonte, uma casa foi construída no meio da prefeitura e da catedral, entre o Estado e a Igreja. Era a casa da vovó e do vovô. Eu ainda os chamo assim, à propósito.

Se eu fechar os olhos, posso me ver dentro da farmácia. Posso sentir a textura do azulejo com meus pés descalços pela desobediência. Posso ver as prateleiras de vidro que tantas vezes tive medo de quebrar, os rolos de papel que usávamos para embalar os remédios e o rolo de fita adesiva — Durex para os íntimos — que fechavam as embalagens. Posso ver os remédios organizados em ordem alfabética, do Amoxicilina até o Xantinon B12. Posso ver a Sil no caixa, protegendo as moedas de dez centavos que eu tantas vezes pedi pra ir comprar chiclete. Era a Farmácia Santo Amaro. Amaro era o meu avô e o Santo era um xará dele. No fundo, depois da mesa em que ficava o segundo computador que eu vi e mexi na vida, ficava o consultório. Lá, em cima da mesa, ficavam papéis coloridos e meticulosamente recortados onde meu vô escrevia as receitas à mão e onde desenhava a quantidade de colheres de xarope que as crianças doentes precisavam tomar sempre que as mães ou os pais não sabiam ler. Eram numerosas as vezes em que eles não sabiam ler, vindos das fazendas que ficavam nos arredores da cidade. Na mesa também ficava a máquina de escrever do meu avô, perdida pelo tempo e, hoje, tatuada na minha pele. Eu amava aquele troço. Aos fundos do consultório, uma cortina escondia o lugar onde a mais medonha de todas as injeções era aplicada, arrancando choro de muita criança inocente.

O vovô era legal. A vovó era meio chata. Os dois cuidavam de todo mundo, em meio à chatice e à legalzice. Se ele estivesse vivo, como ela ainda está, concordaria com essa afirmação e elogiaria o neologismo. Ele tinha uma horta que regava religiosamente cedo e uma oficina cheia de ferramentas que marcava como sendo dele ao pintar de amarelo. Por um tempo, também teve um aquário cheio de caranguejos. Talvez influenciado pelos jacarés da praça, com certeza convencido pela vontade de ter sempre caranguejo pra comer com farinha. Ela tinha o carro da garagem, a administração da farmácia e a última palavra sobre basicamente tudo da casa. Eram um casal estranho que parecia ter encontrado um equilíbrio entre a decisão de dormir em quartos separados e o amor e a responsabilidade pela família que começava nas três filhas e se estendia pelos quatro netos.

A praça dos pinheiros, a igreja vizinha, a casa da vó Ida, o coreto onde os piriquitis eram contados. O moço do milho assado na esquina da biblioteca. A loja de ferramentas no centro comercial da cidade. A rodoviária, a churrascaria ao lado dela, a pista onde se andava de bicicleta escondido. A sorveteria com o mais perfeito sorvete de toffee, a locadora de videogame que cobrava um real por uma hora. O jogo de paciência no computador da farmácia. Ir para Matriz, para aquela infância, brincar no parque de diversões da festa do padroeiro Senhor Bom Jesus que, por algum motivo envolvendo um roubo, são dois bonecos e não só um. Ouvir o canto das cigarras às cinco da tarde, assistir a nuvem de pássaros no mesmo horário e correr dos cocôs brancos dela. Sentar no banco amarelo e colar tatuagem de chiclete no braço. Eram as melhores férias com o melhor cuscuz com salsicha de molho e o melhor café com leite servido em um pires para esfriar mais rápido. A melhor vovó para quem eu fazia companhia na farmácia até as dez da noite. O melhor vovô pra quem eu fazia companhia na mesa de jantar enquanto ele lia o jornal, eu desenhava e nós dois assistíamos a TV mais velha que eu já vi na vida.

São 82km que separam Maceió de Matriz de Camaragibe. Que nos separavam de viver aqueles que foram alguns dos nossos melhores dias, estragados apenas pela saudade dos nossos pais. Na garagem de piso laranja e frio, meu pai tirava o carro e deixava pra trás o rastro de terra dos pneus. Na frente da nossa casa, esperávamos minha mãe fechar o portão branco para que pudéssemos seguir com o carro balançado pelos conhecidos buracos de uma Rua Jurema sem asfalto. Não muito tempo depois, a estrada com vista pro mar. O mar de Maceió, da Garça Torta, da Praia da Sereia, de Paripueira, Barra de Santo Antônio. Depois viria São Luiz, aquela cidade que fica num morro. Então, em alguns minutos e mais à frente, uma ponte levantava o carro onde se ouvia Cássia Eller, Fábio Jr. e algum forró e o levava até aquela cidade de praças, bancos amarelos e jacarés. Meu pai abria a garagem e estacionava o carro que lavaria no domingo. Meus tios Beto e Sandra chegariam depois com meus primos Carol e Betinho. E seríamos nós de novo, todos juntos. Como era de ser por muito tempo até que a vida desse conta de certas coisas.

Eu lembro dos anos 90 e lembro do jacaré. Das árvores, das pedras brancas e cinzas. Lembro da minha irmã e dos meus primos e das barracas de lanches. Do canto das cigarras. Agora, ao visitar Carol em sua casa temporária em São Paulo, coloco o filho dela no meu colo e o faço rir. Lembro da farmácia e do meu avô. Volto pro meu apartamento na mesma São Paulo, olho pela janela e vejo crianças a brincar na rua. Lembro de Matriz e lembro de nós quatro lá. Lembro de Matriz e lembro de casa.

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