Doze de maio

Cesar Filho
3 min readFeb 16, 2024

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Nós nunca dissemos a palavra "câncer", minha mãe e eu.

Durante aqueles meses em que descobrimos o que são sessões vermelhas e brancas, ela sempre usava palavras como "cura", "tratamento", "medicação", mas nunca a que gera desconforto e dúvidas. Um telefonava para o outro e ficávamos por um bom tempo na linha enquanto eu trabalhava, sentado na mesma cadeira e dentro do mesmo quarto onde estou agora. Ela me contava sobre o gosto amargo na boca, os enjoos e tonturas. Não falava, porém, sobre a queda do cabelo. Não sei se porque não se importava ou se porque gostaria que ao menos uma pessoa em sua vida não tivesse aquela imagem em mente. Nunca perguntei direito sobre. Fofocava, comentava sobre meus dias em São Paulo e contava piadas para ouvir sua risada, aquela da qual sinto tanta falta. Sei exatamente o que preciso falar para arrancar o tipo específico de riso. Em um mundo onde fazer as pessoas que amo rir é meu hobby preferido, a risada dela com certeza é o maior prêmio.

Não acompanhei a quimioterapia da minha mãe. Nenhum dos passos. Eu não a levei ao médico, não a fiz companhia durante as tardes tediosas, não a levei para passear e se distrair quando o sol não podia queimar sua pele. Nada. E eu sei que não é ao acaso. Sei que isso é consequência de uma escolha deliberada feita por ninguém além de mim. Quando sua própria cabeça tenta te convencer de que você não importa, ser egoísta pode ser uma solução. Não ligar para o que os outros vão pensar e ir em busca do que você quer pode ser uma solução. Eu só nunca imaginei que não estar com ela naqueles tempos seria uma das consequências. Nunca pensei que ela fosse ter que passar por isso e, se tivesse, que eu não estaria lá. No mar de desculpas no qual pareço ter mergulhado ultimamente, essa é a que mais me machuca. Porque de todas as versões que dona Maria Cristina apresentou (de carinhosa a sufocante), ausente nunca foi uma delas.

Essa é a coisa que martela a minha cabeça sempre que penso em escrever sobre ela. A verdade mais imutável.

Ela estava lá quando eu era criança e precisava ser protegido. Quando eu era um adolescente irritante que queria ir a outro estado conhecer uma garota, ela se enfiou comigo num ônibus e depois em um avião e me levou até o lugar. Quando aprendi a me barbear, quando levei a primeira namorada para casa. Até mesmo quando quis ir morar sozinho, ela ligou pro frete e subiu os móveis. E ela ainda está aqui. Está aqui porque ainda lembro de seu rosto no aeroporto enquanto se despedia de mim e do meu cachorro. E está aqui, do outro lado de todas aquelas sessões. Incondicionalmente. Mandando mensagens de boa noite mesmo quando não as mereço, mesmo quando não mando uma de bom dia. Algumas pessoas podem achar que é tudo o papel óbvio de uma mãe, mas não tomo isso como algo certo. As histórias que conhecemos me fazem não tomar. Por isso que machuca saber que mais um dia doze de maio virá e eu não estarei com ela.

Eu amo essa mulher. Mais do que qualquer coisa na minha vida. Mas também a invejo. Invejo sua força e resiliência. Sua habilidade na cozinha, a paciência que herdou do meu avô. Invejo sua disposição para ser uma pessoa boa. A mais bondosa que já vi. Não sendo religioso como ela, me pego rezando para que eu nunca a dê uma dor tão forte que ela não possa aguentar. Para que eu consiga, sim, ser o homem que ela me colocou nesse mundo para ser. Rezo para que ela e meu pai tenham orgulho de mim.

Nunca foi meu objetivo fazer com que ela conhecesse esse sentimento de distância. Enquanto escrevo isso, minha mente faz a matemática de que sentir saudade de alguém que não partiu desse plano é uma coisa boa. A melhor coisa da saudade não é matá-la, afinal? Estou há mais de um ano sem seu abraço, sem nossas longas fofocas com café, sem sua lasanha ou aquele prato de batata que ela faz no Natal e que eu não consigo nem explicar de tão bom.

Desculpe se eu não estive por aqui ultimamente, mainha. Eu me perdi um pouquinho, mas aos poucos tô me encontrando.

Pra terminar, preciso só fazer uma pergunta pra senhora: já achou a rede da dona Cláudia?

(ninguém vai entender essa última parte, mas ela com certeza tá rindo)

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