Em 2023

Cesar Filho
8 min readDec 24, 2023

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Nota: se você ou alguém que você conhece está passando por uma crise de depressão, procure ajuda. Centro de Valorização da Vida: https://cvv.org.br/

Be without fear in the face of your enemies
Be brave and upright, that God may love thee
Speak the truth, even if it leads to your death
Safeguard the helpless and do no wrong
This is your oath

John Mulaney é um premiado comediante americano nascido em Chicago e conhecido por seus especiais de stand-up e por suas temporadas como roteirista do programa Saturday Night Live. Nos últimos anos, sua vida virou de cabeça para baixo, como vidas costumam virar, quando ele teve uma recaída do seu vício de cocaína e álcool, saiu de casa, se divorciou, foi internado em uma clínica de reabilitação depois de uma intervenção, terminou o tratamento e teve um filho com sua namorada, a atriz Olivia Munn. Em seu mais recente especial, "Baby J", Mulaney diz o seguinte:

“É estranho estar me recuperando do vício em drogas. Era estranho ser um viciado em drogas, mas ao menos eu usava drogas. É estranho às vezes, sabe. Eu estou ótimo. Mas quando estou sozinho, estou com a pessoa que tentou me matar. De vez em quando, passo pelo espelho e fico ‘Ugh, esse filho da puta de novo’. É um sentimento meio assustador. Mas também é um sentimento bom. Às vezes, me dá uma confiança meio estranha. Porque, tipo, eu me importava com o que todo mundo pensava sobre mim. Muito. Era só com isso que eu me importava. O que as pessoas achavam de mim. E não me importo mais. E não me importo porque posso honestamente dizer, o que é que alguém vai fazer comigo que é pior do que eu faria comigo mesmo? O que você vai fazer, cancelar o John Mulaney? Eu vou matá-lo. Eu quase matei.”

Esse especial está na Netflix. A mesma onde eu, há um tempo atrás, assistia a um documentário sobre corrupção na NBA deitado no sofá com um uísque que havia comprado horas antes e dois antidepressivos. Tomei os dois comprimidos com uma dose da bebida e à medida em que a garrafa chegava na metade — da qual, naquela noite, ela passou — eu só conseguia pensar em três coisas: não consigo dormir; esse documentário é ótimo; se eu não fosse a porra de um covarde, teria tomado o envelope inteiro.

Em um dos meus textos, falei sobre como "ela" havia voltado. Na época, tinha a noção errada de que o que tenho é algo a ser superado e não algo com o qual devo conviver.

É assim que ela te pega. Como a cocaína do John. Se para ele, a única forma de se sentir normal era cheirando pó, o normal para mim era estar deprimido. Quando isso acontece, você se encontra na encruzilhada entre aceitar seu caminho como o Rousseau conseguiu ao fim da vida ou achar que vai ficar tudo bem se você simplesmente ignorar a droga por um tempo. Um dia, dois dias, três meses. E então, seu cérebro te convence que só um pouco não vai fazer mal. E você volta ao lugar onde tudo começou. Tudo porque não escutou o que Rousseau disse. Genebrino filho da puta.

Ela voltou. Ela está aqui. De olho em mim, sentada no meu colo. Fico tentando lembrar como ela chegou. Qual foi o evento, quais foram os primeiros sinais, quem eu sou fora disso tudo. Tentando cuidar dos sintomas ao procurar o que os causou e não ao tomar remédio e se cuidar. Literalmente.

Algum tempo depois daquela noite da garrafa de uísque e antidepressivos, me vi numa sala cheia de amigos. Eles riam e contavam histórias e eu, sentado de olhos fechados, pensava sobre como tudo era injusto. Sobre como não é nem um pouco justo o fato de que eles podem simplesmente viver a vida sem esse peso no peito, sem essa voz na cabeça que te convence de que seu humor vai mudar de uma hora pra outra e que nada, principalmente e especialmente você, vale a pena. Sentei lá, pensei essas coisas e fiquei com raiva. Raiva do mundo, raiva de mim mesmo, raiva da minha cabeça por me convencer a fazer algo que eu sabia que no futuro iria querer corrigir.

É assim que ela te pega.

Eu me odiei por cada minuto que fiquei sentado ali. Como poucas vezes na minha vida. E fiz o que uma pessoa normal faria: não pedi ajuda pra ninguém. Normal como eu, no caso.

"Você acha que já sentiu deprimido antes?", a voz disse. "Que tal essa pergunta: o que você escreveria na sua carta de suicídio?"

Sabe qual é a parte fodida? Eu sabia a resposta. Se você me ama, essa verdade vai ser difícil de engolir, mas eu nunca cheguei tão perto de me matar. Não por causa de uma coisa ou outra. Por causa de tudo. Tudo que veio até aquele momento e antes. Todas as lágrimas, brigas, desamparo, sofrimento, desentendimentos, todas as vezes em que eu me agredi, tudo veio e nenhuma solução parecia viável que não aquela. Era tão fácil. Era só cortar a rede da varanda e pular. Eu finalmente ia encontrar a paz que eu procuro desde os sete anos de idade, desde a primeira vez em que eu me senti como se não fizesse parte de canto nenhum. Não valia mais a pena. Eu não valia mais a pena. Eu honestamente acreditei nisso, com todo meu coração.

E o que eu escreveria?

Para os meus amigos: todos vocês foram a luz da minha vida e por muitas vezes a transformaram em algo que eu quis viver. Paula, minha grande amiga, acordar com suas mensagens de voz gravadas no metrô de Londres era uma das minhas coisas favoritas. Saber que estivemos juntos mesmo com toda a distância é uma bênção que eu pude viver por quase vinte anos. Fernando, rir com você das mais absolutas merdas e dividir contigo tudo que a vida nos ofereceu foi uma das minhas maiores alegrias. Ver como sua vida se desenrolou também. Juline, eu fui grato a qualquer deus que nos ouça pelo momento em que você entrou pela porta do Reca e por termos virado companheiros do dia a dia. Você é uma das pessoas mais maravilhosas que eu conheci e, onde quer que eu vá, sempre vou rir do quanto você odiava minha memória ruim.

Para as mulheres que eu amei: Para a primeira, diria que contigo aprendi a ser querido de verdade pela primeira vez. Todo dia você me mostrava como o amor e a bondade podem nos transformar nas melhores versões de nós mesmos. Não tem nada que eu deseje a você se não isso. Para a segunda, diria que a decisão que tomamos aos três meses de namoro foi uma das mais idiotas das nossas vidas, mas não a trocaria por nada. Foi contigo que eu cresci de verdade e aprendi a ser homem. Obrigado por todas as vezes em que pude estar ao seu lado, como companheiro ou como amigo. E para a última, diria que você me deu uma felicidade imensa e foi, pra mim, tudo o que alguém poderia ser. São poucas as pessoas que conheço que são tão felizes quanto nós fomos. Eu amo e sempre amarei todas as memórias que tenho contigo.

Para a minha família: às vezes é difícil de lembrar, mas o amor é a nossa maior força. Se vocês conseguirem viver com isso em mente, nada vai ser impossível. Kayo, eu parei de explicar para as pessoas que você não é meu irmão de verdade. Porque você é. Mesmo que tenhamos nos conhecido numa sala de aula e não numa casa de infância. Você era o norte para o qual eu me guiava. Carla, em toda a minha vida, não há ninguém que eu queira mais ver alcançando a vista do topo. Nós travamos muitas guerras, fossem contra a vida ou entre nós mesmos, mas sei que nossos pés cansados vão poder descansar. Vó, queria ter tido a força e a empatia que a senhora tem. A vida teria sido menos tortuosa. Obrigado por abrir a porta da sua casa sempre que precisei. A primeira lembrança que tenho é estar no seu colo na cadeira de balanço. Mãe, nenhum dos meus sofrimentos é culpa sua. A senhora sempre fez o que pôde e além. Em nenhum momento, eu precisei saber o que não é ter o seu amor, mesmo quando eu era um adolescente chato. Obrigado por me dar a vida, todas as que a senhora me deu, e por me proteger. Você é e sempre vai ser a melhor mãe do mundo. Sinto saudade de te fazer rir todo dia. Pai, eu te perdoo. Por favor, perdoe a si mesmo também. O senhor fez e continua a fazer tudo que pode. Se algum dia falhamos um com o outro, sempre tivemos também os momentos em que tentamos e conseguimos acertar. E, por isso, sei que seu amor por mim sempre foi real.

Eu queria muito que um de vocês pudesse ter me salvado de mim mesmo.

Eles não podem.

Ninguém pode. Esse trabalho vai ter que cair no meu colo.

Antes de morrer, Matthew Perry escreveu um livro de memórias chamado “Amigos, Amores e Aquela Coisa Terrível” onde ele se abriu sobre seus anos enfrentando o vício em álcool e drogas. Durante a turnê desse livro, ele deu uma entrevista na qual revelou que um conselheiro disse, “Lembre-se, não é culpa sua.” Para o que Matthew respondeu, “Como assim não é minha culpa? Sou eu que estou fazendo isso.”

Como assim não é minha culpa? Sou eu que estou fazendo isso.

Essa frase me assombra. Enquanto escrevo, flashes de momentos em que eu alienei e magoei pessoas passam na minha cabeça como uma retrospectiva horrível de fim de ano. Eu posso ver seus rostos, o choro em suas vozes e a decepção nos olhares. E lembrar que em cada um desses momentos, eu não senti remorso. Eu senti raiva. Raiva de mim mesmo, da minha cabeça, das minhas ações. Como assim não é minha culpa?

É véspera de Natal e eu estou no meu apartamento com meu cachorro, que usa um cone. Acordei hoje às seis da manhã e me senti sozinho. Mais sozinho do que em muitos momentos da minha vida. Quis chorar, mas não consegui. Mais tarde, vou me unir a algumas pessoas e comer uma ceia entre amigos. Escrever isso aqui é difícil. Não apenas pelo conteúdo, mas porque eu não gosto de ser o centro das atenções. Nada mais "me notem, por favor" do que escrever sua própria carta de suicídio e mostrar ao mundo. Mas o silêncio é a arma da depressão. E o meu tem muita munição. Se eu não falasse isso, se eu não colocasse pra fora o que tá aqui dentro, eu ia perder o ponto da minha última crise, quando tive que ser levado ao hospital por não conseguir respirar. Uma hora, tudo vem à superfície. E ao invés de superar, eu preciso aceitar. Como Rousseau. Genebrino filho da puta.

Há dois meses atrás, John Mulaney foi ao "Late Show" para divulgar seu especial "Baby J" em uma entrevista com o apresentador Stephen Colbert, que perguntou o que John havia aprendido sobre si mesmo durante a jornada de recuperação do vício. O comediante responde:

"O que eu aprendi sobre mim? Eu sou uma pessoa feliz. Por algum motivo, criei vários obstáculos no meu próprio caminho que me deixaram exausto, desorientado e infeliz. Mas eu sou, no meu cerne, uma pessoa feliz e não há problema em querer proteger isso ao viver a vida que quero viver. Eu sou muito sortudo, tenho uma vida muito boa. E eu não quero ser o motivo pelo qual tudo fica complicado."

Em 2023, me mudei para a cidade de São Paulo. Eu estava pronto para muita coisa daqui, mas não para uma: as ladeiras. Elas são horríveis e meu bairro está cheio delas. Nos passeios com meu cachorro, preciso enfrentar uma antes de chegar em casa. Então, ao pé da ladeira, olho para cima, respiro fundo e penso: "É só uma subida."

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