História

Cesar Filho
5 min readJan 7, 2023

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O conselho médico ainda não decidiu o diagnóstico da maioria delas, mas uma das coisas que as pessoas precisam saber sobre mim é que eu tinha medo da princesa Diana.

Foram poucos os dias que separaram o meu sexto aniversário de uma fria noite francesa de agosto de 97, quando um carro azul colidiu em uma pilastra no túnel da Ponte de l’Alma, resultado de anos de perseguições e escândalos alimentados por uma intensa e nociva cultura de celebridade. E como quase toda pessoa viva sabe, a morte vende. Por isso, nos dias seguintes ao acidente, os outros assuntos de conversa do mundo se tornaram apenas em um intervalo enquanto não se falava da morte da Lady Di. Ela estava nas televisões das salas de todos nós e o meu pequeno cérebro de seis anos não sabia de muito, mas sabia de uma coisa: aquela senhora havia morrido. Então, minhas reações ao olhar para o icônico cabelo loiro da princesa de Gales eram negativas. Porque toda vez que assistia em um jornal a um vídeo dela com a família real britânica ou a entrevistas como aquela famosa dada à rede BBC, tudo que eu via era uma mulher morta falando. E não sei quanto a você, mas geralmente não gosto quando os mortos falam. Mas se eu via a princesa como alguém morto era por um motivo simples.

Foi a história que me contaram.

No Carnaval de 2022, alguns amigos e eu resolvemos ir para a Cachoeira da Tiririca na cidade de Murici, interior de Alagoas. Como alguém que não consegue segurar a risada ao ver outro ser humano se estatelar no chão, tento sempre tomar um cuidado extra ao me encontrar em situações onde isso pode acontecer comigo. Foi o que fiz quando, Mata Atlântica adentro, andei os dois quilômetros e meio de ida e os dois quilômetros e meio de volta daquela maldita trilha que me presenteou com a vista da cachoeira e dos meus amigos tropeçando, escorregando e, sim, caindo. De banho tomado e trilha feita, pude desligar o cuidado ao enfim chegar em superfície plana. E em menos de cinco minutos, torci meu pé. Não foi uma torção feia como aquelas que tiram o jogador da próxima partida, mas doeu o suficiente para que eu ganhasse o direito de reclamar sobre. Em meio à dor, me agarrava à promessa de um futuro melhor, vinda de um acordo feito pelo grupo: a promessa de irmos a um McDonald’s assim que chegássemos em Maceió. O que importava não era meu pé que doía ou os prováveis dias em que ele continuaria a doer, mas aquele momento do passado em que abri o sanduíche de cheddar, pus uma batata frita dentro e dei uma mordida. A memória das primeiras vezes e todas as vezes subsequentes em que fiz isso, gravada na minha psique como mancha de água sanitária em camiseta de cor escura. Porque a história de como eu fui recompensado com um Big Mc depois de uma forte dor no pé é muito melhor do que a história de como comecei a sentir aquilo pra começo de conversa. Porque uma história tem o poder de mudar a nossa realidade.

Um pênalti aos quarenta do segundo tempo vai mudar a história do jogo. Se alguém desconfia de algo, deve ser porque a história está muito mal contada ou porque é uma daquelas pra boi dormir. A nossa própria sobrevivência dependeu e depende do fato de que nós somos os únicos bichos do planeta que sabem contar histórias e de que, em algum momento dos milênios, um pescador disse a outro que viu alguns ursos arrancarem fora a cabeça de um cara, então brigar com eles talvez não seja uma boa ideia. Depois que a palavra virou escrita, vieram coisas como os nossos contratos, alguns dos primeiros documentos da existência humana. Desde as constituições que pretendem nos colocar na linha até aquela lista de dez simples regras que alguém supostamente teria carregado, descrita no livro que é, olha só, a história mais vendida do mundo. Criamos nossas democracias e transformamos nossas relações com os deuses, que vieram a ser mais sobre o espiritual e menos sobre o que um faraó queria. Demos luz à noção de tempo e um futuro para o qual Marty McFly pudesse voltar depois de um constrangedor encontro com a própria mãe. Mas ao invés de skates voadores, vimos surgir a guerra contra o absurdo, onde a linearidade lógica dos fatos dá lugar a bolhas de narrativas tão transparentes quanto a redoma da Terra Plana.

Você, as pessoas que conhece, as que vai conhecer e eu estamos todos rodeados de histórias. Todos ocupando os dias ao escrever as nossas próprias, seja em diários ou em stories do Instagram. Nessa época do ano, é normal que pensemos em recomeços. Em acertos de contas que fazemos com nós mesmos. Ano passado, publiquei um texto onde contava sobre uma tradição natalina que tenho: a de escrever uma carta para que o meu eu do futuro leia no Natal seguinte. Falei como, ao ler a carta de 2020, me surpreendi com a ideia de que tive ideações suicidas naquele ano, visto que 2021 conseguiu ser pior nesse quesito. Não me permiti esquecer o sentimento que aquela breve viagem ao tempo me proporcionou. Na carta, eu suplicava para ainda estar aqui. “Só esteja aqui”, escrevi. Ainda estou, como você bem pode ler. A começar pelos motivos óbvios. Não querer o sofrimento daqueles que me amam. Em seguida, a terapia, aquela que deveria ser classificada como óbvia para todos. Por último, vem um motivo mais particular.

Eu quero saber o que acontece.

Eu amo histórias. Do episódio de desenho da infância, passando pela série baixada em RMVB legendado até a fofoca que me contam no WhatsApp. Amo ler, assistir, ouvir, cantar e escrever. Se dependesse de mim, estaria pagando meu aluguel e alimentando meu cachorro com as palavras que coloco em ordem. Se dependesse de mim, eu viveria ajudando pessoas a esquecer aquilo que as machucam, mesmo que por um momento, com palavras ditas nas minhas histórias. Porque aquelas escritas por outros me mantiveram por aqui de uma forma. Essa paixão incita a curiosidade de saber o que vai acontecer quando eu dobrar a esquina, como alguém que muda de estado por ter a certeza de que a vida não pode ser vivida apenas nos bairros de sempre. O ano de 2022 fechou uma década de importância para mim. Um período de tempo em que coisas vitais — boas e ruins — vieram para me colocar no caminho que me transformou na pessoa que sou grato em ser, por mais egocêntrico que pareça. Não sei se algum dia vocês poderão comprar um livro meu, mas pretendo ficar por aqui tempo o suficiente para descobrir.

O final nem sempre é o que esperamos, mas pode ser memorável mesmo assim. Por exemplo, entre as décadas de 70 e 80, um jovem Mark Hamill filmava uma pequena produção chamada "O Império Contra-Ataca". Com o roteiro em mãos, ele já sabia da grande reviravolta: em uma cena crucial, Darth Vader revela que Obi-Wan Kenobi matou o pai de Luke Skywalker, sendo o personagem de Alec Guinness o grande vilão no fim das contas. Então, Irvin Kershner, diretor do filme, entrou no camarim de Hamill para dizer algo. Algo que ele, o diretor, sabia, algo que George Lucas sabia e que agora Mark saberia. E disse ao ator que se aquilo vazasse, saberiam que a culpa seria dele. E em um pedaço de papel entregue a Hamill estava a verdadeira revelação do filme. E o resto, como dizem… bom. Você sabe.

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