Matthew Perry

Cesar Filho
6 min readMay 3, 2024

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Os dois primeiros socos não doem. Como fazer cócegas em mim mesmo, não sinto nada. É a partir do terceiro que as coisas mudam. Estou embaixo do chuveiro com a água morna caindo em cima do meu corpo e dos pensamentos ruins que se misturam com todos os outros. Meu rosto começa a arder um pouco e eu continuo. A ideia dos cortes nunca me agradou. É muito dramático, chama muita atenção. Não combina comigo. Sou o cara que, anos antes, esteve no canto da mesa da cerimônia de um casamento com uma discreta maquiagem na cara que escondia um hematoma no olho. Durante a faculdade, lembro da apatia que sentia ao ver um ônibus ou um caminhão vindo em minha direção. Antes de ler “A Redoma de Vidro”, da Sylvia Plath, algumas pessoas me disseram que o livro era pesado. Ao invés de tristeza, encontrei reconhecimento nas páginas. Desbloqueei algumas memórias de uma adolescência longe o suficiente para parecer fazer parte de outra vida. E faz.

Esse é o irmão que o meu irmão tem. Por isso, quando ele me perguntou como pode alguém tão na bad ter um senso de humor tão bom, não soube o que responder. Era uma pergunta válida. Alguns dias antes, em um sábado ou domingo, estávamos um casal de amigos e eu perambulando pelas ruas da Vila Madalena a fim de me distrair. Eu tinha acabado de pagar 60 reais em um almoço que não comi e nós estávamos indo em direção a uma sorveteria. No caminho, falei com meu terapeuta no WhatsApp.

“Liga pra mim. Não precisa ser de vídeo, não precisa ser uma ligação longa. Só me liga, por favor.”

Ao chegarmos na sorveteria, meus amigos foram ao caixa e, antes que eu pudesse me sentar, recebi a ligação. Fui até o banheiro e atendi, já com um nó prestes a desatar na garganta. Sentei-me no chão em frente à porta do banheiro masculino e, enquanto ouvia meu terapeuta me aconselhar, desabei como poucas vezes na vida. Eu chorava tanto que todo o meu rosto ficou molhado. A essa altura, meu amigo veio com uma garrafa de água para me acalmar e passava a mão no meu cabelo. Tudo que eu conseguia dizer ao telefone era:

“Me ajuda, por favor.”

Então, quando meu irmão perguntou como eu estava conseguindo manter o humor para fazer piadas idiotas, minha mais sincera resposta é que eu não fazia a menor ideia. Naquele fim de semana da sorveteria, eu já tinha chorado em três Ubers diferentes e um deles teve a compaixão de me dar um pedaço de papel higiênico para secar o rosto e desejar que o Senhor me acompanhasse. O caso era sério. Me odiar era algo com o qual eu já estava acostumado. Ainda estou, pra ser bem sincero. São muitos anos de experiência. Quase trinta e três. Não importa que canto da minha vida estivesse desmoronando, esse era o reflexo. A força motriz por trás do que eu fazia. Das portas batidas. Dos socos na cara. Das doses de uísque às nove da manhã. Eu teria que involuir um bocado para desejar isso a alguém.

“Vamo na Paulista.”, eu disse aos meus amigos. “Quero procurar um livro.”

Em mais um Uber, fomos para a livraria. Perguntei ao funcionário se ele poderia encontrar o livro do Matthew Perry pra mim. Ele vasculhou pra lá, pra cá, pediu ajuda para outra pessoa que seguiu a vasculhar tanto quanto e, por quinze minutos, não conseguiram encontrar. Eu já tinha perdido as esperanças e amaldiçoado minha sorte quando o atendente avistou minha camisa verde do Boston Celtics e veio até mim com o livro em mãos. Na capa azul, Matthew sorri por trás das palavras “Amigos, Amores e Aquela Coisa Terrível”. Comecei a ler pouco depois enquanto acompanhava meus amigos em suas compras.

Era a primeira vez em muitos dias que eu conseguia me distrair de verdade. Perry conversava comigo. Tentava aliviar um pouco da minha ferida ao mostrar as várias que ele tinha. Como um cachorro numa coleira, seguia o casal de loja em loja de um shopping, lendo uma página atrás da outra. Passei as próximas duas semanas indo a uma padaria com a autobiografia em mãos para tomar café da manhã. Eu estava deprimido demais para me esforçar para fazer qualquer coisa, inclusive chegar perto do fogão. Então, com a mixtape “Faces” do Mac Miller no fone de ouvido, eu subia a ladeira até a padaria e, em questão de minutos, pedia um pão gratinado com suco de laranja e abria o livro para ler antes e depois de comer, descobrindo toda a dor que aquele cara sentiu por tanto tempo. Substituía o vício dele pela minha depressão para conseguir me identificar com tudo. Não era como se estivéssemos passando pela mesma coisa (Perry gastou 9 milhões de dólares em clínicas de reabilitação e eu só tinha uma mente perdida e partida), mas havia algo de reconfortante em ler um dos meus artistas preferidos dizer, “Eu sou quebrado também. Você não tá sozinho nessa.”

Estar sozinho parecia ser a sina de uma vida inteira. Durante a infância na década de 90, eu ficava trancado em casa e só podia sair ao mundo quando minha mãe chegasse. Ansiava por horas para que ela enfim viesse até mim, o que pode ter evoluído para uma atração por mulheres inalcançáveis, mas deixo que Freud seja o juiz disso. Em casa, eu assistia televisão. O primeiro episódio de Friends que vi foi o sexto da quinta temporada, “The One with The Yeti”, descoberto por mim enquanto zarpava pelos canais, o que é uma frase muito antiga de se dizer. Quando o Matthew Perry morreu, me senti estranho. Assim como uma criança com um livro, as séries de TV eram minha janela para o mundo e ao assistir aqueles episódios de Friends, tudo que eu queria era ser o Chandler Bing. De certa forma, eu era. Meus pais eram divorciados, eu tentava ser o palhaço da turma, muitas pessoas achavam que eu era gay e, como ele, eu não tinha esperança e era esquisito e desesperado por amor. Eu imitava os trejeitos dele, a entonação da voz e tentava, sempre, ser o sarcasticuzão que arranca risadas das pessoas.

Eu amo fazer os outros darem risada. Ele e outras histórias que eu curtia acompanhar me ensinaram isso. Uma das poucas memórias boas que tenho dos anos tardios de estudo envolvem estar de frente para as pessoas contando alguma bobagem para fazê-las rir. Aprendi muito cedo que enquanto eu fizesse isso, elas iam gostar de mim. É um pensamento problemático por si só, mas, ei, pelo menos eu tinha amigos. Nenhum de nós morava num apartamento grande em Nova York, mas estávamos sempre juntos. Era o motivo pelo qual eu desenhava tirinhas, o motivo pelo qual eu contava piadas autodepreciativas ou pelo qual eu contava as mesmas histórias idiotas para pessoas diferentes. É um tipo de vício que te move a seguir em frente.

Por vezes, a ansiedade tirou isso de mim.
A depressão tirou isso de mim.
Tudo que sobrava era alguém que magoava aos outros e a si próprio.

A última vez que eu dei um soco na minha própria cara foi duas semanas depois daquelas voltas na Vila Madalena. Sentado no chão do banheiro, embaixo do chuveiro, eu chorava depois de ter feito isso. A vontade de fazer aquilo de novo, de me entupir de comprimidos, de me deixar ser atingido por um ônibus, tudo ia descendo pelo ralo com a água morna. Sentado, eu pedia desculpas em voz alta. A quem eu amo. A mim mesmo. Fundo do poço. Eu queria levantar. Voltar a sentir um pouco do que era antes. Do cara que perdi diante daquilo tudo e continuava a perder vez ou outra, mesmo com um sorriso no rosto, sem que ninguém fizesse ideia. Encarar aquilo era difícil. Escrever sobre aquilo é difícil. Fazer os outros rirem? Imitar o Chandler Muriel Bing ou me colocar no lugar de qualquer outro palhaço pra arrancar uma risada? Fácil demais.

Em seu livro, Matthew Perry fala sobre a luz que vemos no horizonte do mar como sua luz no fim do túnel. Eu tenho a minha versão disso. É a forma como o sol ilumina as nuvens, mesmo quando elas o cobrem. É aquela linha de luz na ponta do algodão. Sempre que vejo aquilo, me sinto mais esperançoso e menos… bom, menos eu mesmo. Ou aquele lado de mim. Será que eu poderia ser mais brega?

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