Nove de novembro

Cesar Filho
4 min readDec 4, 2022

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Estávamos todos abarrotados em um quarto com paredes de cor bege quando ela abriu a boca para perguntar:

- O homem foi instalar o box do banheiro?

Era uma tarde de dois mil e nove e aquela foi a primeira coisa que me disse depois da cirurgia que uma doença no peito a levou a fazer. Não muito distante do leito, na mesma rua, estava o apartamento onde moravam minha mãe, minha irmã, eu e o tal box.

- Foi. — respondi, com uma pequena risada.

Ao menos acho que ri. Minha memória não é lá uma aliada, mas estou certo de que tenha reagido assim porque é claro. É claro que ela perguntou isso. É claro que ela estava preocupada com aquilo mesmo estando operada em cima da cama de um hospital que, por acaso, é o mesmo em que eu nasci — embora ache que isso tenha sido só uma coincidência. Não por coincidência foi a decisão de não levá-la ao mesmo hospital em que, pouco mais de um ano antes, meu avô havia morrido. Você consegue imaginar isso? Receber aquele diagnóstico, fazer aquela cirurgia um ano depois de ver as suas filhas perderem o pai?

Eu não.

Não tenho esposa para me deixar viúvo, não tenho filhas para ficar sem mãe e nem doença no peito. Mas mesmo que eu me casasse, colocasse uma criança no mundo, perdesse minha mulher e fosse atacado pela doença em outra parte do corpo (bate na madeira), sinto que ainda assim não conseguiria imaginar.

Em outra situação, em outro hospital, eu a acompanhava em uma parte especial da UTI — ou o máximo de especial que um lugar desses pode se tornar. Estava sentado em frente ao leito e comia minha deliciosa comida de hospital quando notei que ela chorava. Ela chorava depois de alguns dias com um tubo enfiado goela abaixo porque repentinamente o ato de respirar se tornou difícil demais para uma mulher que costumava trabalhar três turnos. Mas não era por isso. Era pela minha comida. Por estarmos ali e não na mesa dela. Por ser a comida daquela bandeja e não a comida com a qual ela sempre me empanturra. Ela fingiu que não chorou e eu fingi que não vi e continuei a comer. Com o bipe do monitor cardíaco servindo como trilha sonora.

Pode ser que a essa altura você já saiba, mas ela não para, a minha avó. É um dos traços mais marcantes dela. Dos mais admiráveis. E, sim, dos mais irritantes. Por que eu deveria mentir? Moramos juntos por longos sete anos. Herdei a paciência dela e ela tem a paciência que herdei, o que significa que batemos de frente inúmeras vezes. Lembro de um célebre episódio em que ela decidiu pintar o apartamento inteiro enquanto a cidade passava por um problema de falta de água e tudo em casa ficou sujo de tinta ao passo em que não tínhamos como lavar a mão. Por que, eu me perguntava, por que ela simplesmente não dá uma trégua? Sempre me perguntei isso. Sim, eu sei, é ela. Mas como alguém se transforma em um exemplo de resiliência para tantas pessoas, estando elas ligadas por sangue ou não? Em que ponto da vida de filha, irmã, esposa, mãe, avó, professora, dona de farmácia, ou qualquer que seja o papel que caiu em seu colo, em que ponto ela descobriu ter o que precisa para não parar? Ela sabe disso? É consciente? Fazer o que quiser, seja por algum interesse próprio ou para ajudar alguém que mereça ou não. Tento achar a resposta dessa pergunta até mesmo agora ao escrever esse texto.

Eu, você, todos temos a nossa própria maneira de demonstrar amor, certo? Posso fazer um desenho para uma namorada, levar minha mãe para a pizzaria preferida dela e pedir a uma amiga ou amigo que me avise ao chegar em casa depois do bar. Posso aconselhar minhas irmãs, tomar um café com o meu pai. Olhar para o espelho e pensar que, olha só, até que eu não me odeio tanto assim. Todos esses tipos de amor que aprendemos apesar do mundo se esforçar dia e noite para que não aprendamos. Aquilo que não apenas é a melhor coisa que fazemos, mas o que alimenta a certeza de que as pessoas são as nossas melhores heranças. E à medida que envelheço, percebo um ponto crucial na cruzada a fim de desvendar essa Maria Helena em particular que tem tudo a ver com isso. O amor dela vem através da força. A força de aguentar o que aguentou, de amar quem amou. De ser quem ela é. Porque só ela pode fazer isso. Podemos ter a falta de paciência, a mania por limpeza, o empenho no trabalho ou qualquer outra coisa, mas para por aí. Até você, que acabou de chegar, já tentou ser como ela. Quase nasceu no dia nove de novembro. Mas mesmo que você tivesse nascido no aniversário da sua bisa, ainda assim ela estaria na frente: como alguns da geração dela, dona Helena tem duas datas de aniversário.

Miguel, um dia você vai crescer. O seu tio-primo aqui vai te levar numa mesa de bar e nós vamos conversar sobre a vida, o cuidado, os conselhos e o perdão. Sobre um bom dia de praia e as músicas dos discos que eu vou te dar. E sobre ela. Sobre o amor e a força. Vou contar tudo sobre ela e como ela é e foi. Aí, você vai rir. Porque é claro que ela perguntou sobre o box do banheiro. Porque ela nunca parou. E nós também não vamos.

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