O meu apartamento

Cesar Filho
4 min readOct 4, 2022

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Tenho a estranha e verdadeira impressão de que o meu apartamento está tentando me expulsar. É de se imaginar que isso ocorra em momentos angustiantes e intermináveis como aqueles em que as pragas resolvem aparecer com a frequência de convidados sem graça dos programas de auditório. Mas uma casa sem pragas é como um corpo sem cicatrizes, um domingo sem tédio. Isso tudo faz parte do status quo da vida que, se muito, muda a órbita apenas o suficiente para seguir girando.

O primeiro sinal, os primeiros integrantes a irem às picas, foram os móveis. Com a ajuda de um gato e de um cachorro, começaram a ruir. Uma porta de guarda-roupa quebrada, um cupim comendo solto no armário. A velhice chegou à madeira muito tempo depois desta ter sido posta, quando o prédio tinha cheiro de novo, nos idos de dois mil e lá vai bolinha.

Não é curioso que agora podemos usar essa expressão? Costumava ser mil novecentos e oitenta e lá vai bolinha, noventa e lá vai bolinha. Agora a porra da bolinha tem tanta artrose que mal se lembra de quando assistiu o Saddam morrendo na TV.

As próximas a me abandonarem foram as luzes. Não sei quantos homens são necessários para mudar uma lâmpada, mas sinto que vou descobrir quantas lâmpadas são necessárias para mudar um homem porque estou a um nó de corda de distância de fazer um curso básico de elétrica para lidar com a fiação desse lugar. Então, as coisas foram seguindo o fluxo. Privada quebrada, pia entupida, teto com infiltração. Troca aqui, mexe ali, conserta acolá. Sem ignorar o fato de que fui recebido com uma fechadura ruim e tinta gasta na parede.

Uma banda marchando ao som da música “vai embora daqui”.

E numa gloriosa manhã, meu cachorro estava fixado em um ponto específico do piso da cozinha. Achei que ele queria comer algo do chão porque os cachorros tendem a querer comer algo do chão. Até notar que não havia nada ali. Depois, quando eu estava lavando a louça do café, ele veio.

O barulho.

Crec.

Eu e Calvin olhamos incrédulos. O chão começou a subir como se o Vecna estivesse vindo pedir uma colher de sal para fritar ovos.

Crec, crec, plá.

Então, parou — até parar de parar e voltar a continuar.

Plá!

Um “plá” de respeito. Um “plá” com pê maiúsculo. Um senhor “plá”, condecorado pela rainha morta e tudo mais. Pedaços de azulejo voaram e eu pude ver o que há embaixo da manta de cerâmica que cobre todo o piso do apartamento. Era ele. O cúmulo. Ele chegou, como eles costumam chegar. Eu não sabia o que fazer e minha reação foi lavar o restante dos pratos. O 910 está mesmo me expulsando, bicho. Será possível? Eu passei por coisas aqui, sabe? Tive desilusões amorosas, enfrentei minha depressão, assisti aos finais de Fleabag e The Good Place. Ah. E aquela quarentena hilária a qual todos tivemos que nos submeter nos anos de 2020 e 2021? Adivinha onde foi a minha?

Pois é.

Entre essas paredes carcomidas com quadros estranhos.

O curioso é que eu nem deveria estar aqui. Minha irmã estava, na companhia da minha mãe, procurando por um apartamento para ela. Uma mulher, então, parou as duas no meio de uma rua da Ponta Verde para pedir informação e em troca ofereceu outra: a irmã dela estava alugando um quarto e sala. Minha irmã veio montar a vida aqui e, algum tempo depois, vim morar de favor no sofá da sala. Até que ela não quis mais ficar e foi embora. E assim, através das nossas irmãs, dona Cláudia ganhou um inquilino e eu ganhei um teto. Um lugar meu, apesar de não serem os meus móveis, apesar de não serem os meus quadros, apesar de não ter sido minha a escolha. Apesar de sentir como se estivesse morando nas memórias de outra pessoa, como se o passado dela fosse o meu presente num filme ruim de ficção científica. E na chuva, enchi isso tudo aqui de memórias, aquelas das quais fiz questão e as outras que os dias me reservaram sem pena.

Como os adultos têm o péssimo hábito de se visitarem, vou até a casa dos meus amigos e vejo a identidade deles estampada nas paredes. Volto para o 910 e não encontro a minha. Estou ocupado demais sentindo o cheiro de morte podre ao trocar o sifão da pia. Ou levando um choque na cabeça ao tomar banho.

Sim, na cabeça. Na hora do banho.

Um choque.

Na fração de segundo que durou, eu vi branco. Não foi mais ou menos branco, não foi marfim, foi branco.

Branco.

Como a neve. Como a diretoria do Itaú.

Tento me confortar com a noção de que os problemas me são dados para que sejam meus. Sim, eu vou conhecer todos os porteiros, todos os funcionários e uma quantidade suficiente de vizinhos para que ninguém ache que sou um serial killer porque adivinha só? Eu estou em casa. “Lar, doce lar, garoto. Guarde aqui o arrependimento que sente ao gritar com seu cachorro. Acorde nessa cama sem saber como foi parar nela. E, claro, conserta aqui esse fogão.”

Não.

Ele quer se ver livre de mim.

E jogou o meu lugar no mundo, aquele que busquei durante toda a minha vida, para a próxima fase. Aquela para a qual insisto em estar pronto. Por aqui, não há mais nada além de consertos. Pode até ter sido o que me esforcei para que fosse, mas passou. Assim como a terça segue a segunda, a hora de dormir vem antes da hora de acordar.

As coisas são o que são. Até não serem mais.

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