Próximo

Cesar Filho
6 min readOct 23, 2022

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Minha mãe trabalhava em um supermercado quando eu era moleque. Até hoje não sei bem o que ela fazia. Lembro apenas que ficava sempre perto das caixas. Caso não tenha sido uma delas, deve ter sido uma das entidades que salvam as coitadas e os coitados sempre que fazem alguma bobagem diante do osso do ofício. Sabe? Aquelas pessoas que vão até o caixa com a autoridade de um cartão em mãos e resolvem o problema. A linha hierárquica de um supermercado deve ser ótima.

- Eu posso até estar empurrando carrinhos hoje, Alessandro. — alguém diria. — Mas, um dia, terei um cartão enrolado no pescoço e as pessoas gritarão meu nome.

Tudo é uma questão de ascensão ao poder. Seja na guerra dos tronos ou no Unicompra da Ponta Verde.

Meio merda da minha parte pensar isso, né?

Como se a única ambição de quem empurra carrinhos fosse subir de cargo dentro do mercado onde já trabalha. O camarada quer mais é ganhar sua própria versão de loteria. Reformar a casa, pagar o colégio das crias, comprar um carrão, viajar para um lugar foda e ouvir um idioma que nunca ouviu. Colocar o puto do ministro da Economia no lugarzinho dele.

Gostava de visitar a velha. Gosto de saber como as coisas funcionam, então aquela era uma forma de dar uma olhada por trás da cortina da figura materna e tentar entender quem é essa tal mulher que regula a minha vida. Fora que a unidade de supermercado em que minha mãe trabalhava tinha uma banca de revista que eu adorava e as visitas eram sempre uma chance de arrancar um gibi do meu pai. Anos depois dos contracheques da dona Cristina, quando saí da casa da família e fui morar sozinho, os supermercados voltaram a influenciar minha vida de maneira decisiva. Eu morria de medo de ser sequestrado quando era mais jovem, mas foi bem depois que virei refém. E a rede varejista virou meu grande ônibus 174 (joguem no Google, crianças).

Poucas coisas são tão humilhantes quanto pedir duzentos gramas de queijo e ter que abandonar a bandeja na sessão de frutas porque o preço saiu maior do que o desejado, mas, como desgraça pouca é bobagem, no maravilhoso ano de 2020, o supermercado virou o segundo dos menos de três palcos do festival da minha vida. E passar tanto tempo no mesmo lugar desperta em mim aquela curiosidade sobre os bastidores. Todo ecossistema tem uma história pra contar. E como escritor amador e fofoqueiro profissional, cabe a mim preencher as lacunas.

Me vejo na fila imensa do caixa rápido. Quinze itens ou menos. Lá estão os personagens de sempre. Uma das caixas é a Amy Santiago. É o apelido que dei a ela que, de máscara, me lembra a atriz da série Brooklyn Nine-Nine.

- Próximo. — Amy diz e a fila anda.

Ela pega alguns papéis do chão e joga no lixo. Deve ser a louca da limpeza. Ou é defensora da reciclagem e do meio ambiente. Além de um exemplar raro de boa policial da cidade de Nova York, a Amy Santiago ainda é ambientalista. Será?

Não.

As máscaras nos permitem julgar o olhar das pessoas e o dela está meio cansado. Até combinaria com o de uma ambientalista, mas não de uma esperançosa. Vai ver que ela defende a causa, mas acha que a abordagem é um problema. Que esse papo de “vamos salvar o planeta” não vai dar em nada. Salvar o planeta? O planeta vai sobreviver.

Somos nós que estamos fodidos.

- Tem que mudar o discurso. — ela diria. — Não me vem com historinha de preservar o futuro das crianças. Todo bebê de classe média já nasce com um iPad na mão, então não tenta nos convencer de que a gente se importa com as crianças porque claramente estamos cagando para elas. Sabe com quem nos importamos? Sabe com quem cada um de nós nos importamos? Nós mesmos.

É só falar sobre isso?

- Sabe os desastres naturais com os quais você se impressiona na televisão e pelos quais você é atingido? Ou até mesmo aquele calorzinho filho duma puta do qual você não aguenta mais reclamar com a Sônia do 405? Pois é, seu arrombado. Você está fodido. Não o futuro, não o planeta. Você. E vamos continuar cada vez mais tomando espetacularmente no cu até perder tudo e a Terra vai seguir sendo uma pedra flutuante por muito tempo depois.

Meu Deus, Amy. Que visão pessimista da vida. Não precisa disso. Será que ela é assim? Opa. Jogou um papel no chão. Tá, talvez ela não seja um pináculo de ambientalismo no fim das contas.

- Próximo.

A fila volta a andar. Vamos ver quem mais está de plantão hoje. Ah. Lá está ele. O cara que uma vez me deixou levar um pacote de Cebolitos sem pagar. Não foi presente, ele esqueceu de passar o produto e já tinha fechado a compra. Um preguiçoso nato. Tem cara de ser uma daquelas pessoas de vinte e poucos anos que reclamam do emprego merda, alheias ao fato de que é justamente por terem vinte e poucos anos que a sociedade reservou aquela merda de emprego para eles. Ele também tem a mesma cara do maluco que faz a propaganda da Vivo, mas isso não vem ao caso. Não vou reclamar do nosso herói comunista que não usa capa.

Enquanto o cliente coloca as compras na esteira, ele checa o celular. Será que o Robin Hood da Rua Durval Guimarães é viciado em redes sociais? Já vai checar o Instagram assim que acorda, sempre na promessa de dar um tempo por achar que o vício não faz bem. Que transforma todos em uma mistura insalubre de quem consome e quem produz. Uma plataforma onde todos precisam falar sobre tudo o tempo inteiro, andando em círculos como hamsters numa roda gigante. Onde conselho não é bom, mas é vendido mesmo assim. Deve até se irritar com os próprios amigos de vez em quando. “Ah, isso aconteceu”. Foda-se, né, Robin? Só não vai ser hipócrita, tá? Dizer que se sente solitário depois que abandonar as timelines. Você pode até achar que a humanidade não precisava atualizar a forma como se socializa, mas é assim que ela se comunica, então aguenta o tranco.

Bom, ou isso ou ele recebeu uma mensagem no WhatsApp. Ih, rapaz. Será que o Robin Hood levou um toco? Porra. É foda, bicho. Sinto muito. Fica assim não. Sacode a poeira etc. Coloca um samba pra tocar aí no Spotify. Daqueles que não podemos deixar morrer. Vai ficar tudo bem, cara. Sempre fica. Depois de dar tudo errado, claro.

- Próximo.

Opa. Minha vez. Lá vou eu com minha cestinha. Será que só tenho quinze itens aqui? Bom. Já é tarde pra pensar nisso.

- Boa noite. — eu digo.

- Boa noite. CPF na nota?

Mas que voz e cara de bunda, hein? Pô, moça. Qual foi? Não gosto de quem atende com cara de bunda. Sou só um ninguém que quer ser alguém, fiz nada de errado. Foi isso que eu pensei antes de olhar pra barriga dela. Caralho, ela tá grávida. Como minha mãe um dia esteve. E trabalha em um supermercado. Como minha mãe um dia trabalhou. Perdão, moça. Não sabia que além de carregar o mundo, a senhora também estava carregando uma vida. Uma hora dessa, trabalhando aqui. Que vacilo o meu. Faz o seguinte. Pega o que quiser da cesta. Eu te atendo. Débito ou crédito?

- Não precisa, obrigado. — eu respondo a pergunta sobre o cê-pê-éfe. Culpa branca é uma delícia.

Ela passa item a item, eu insiro o cartão ao invés de aproximar. Mais um pouco de bufunfa pra financiar o supermercado. Daqui a pouco vou começar a pedir participação nos dividendos. Exigir direitos. Dizer que é um absurdo colocar árvores de Natal à mostra. Estamos em outubro, caceta.

- Obrigada. — a moça grávida diz e me entrega a nota.

Saio com minhas sacolas em mãos me sentindo um bundão desbundado. Ela está grávida e eu aqui reclamando do cansaço dela. Será que vai ter menino ou menina? Se for menino, será que vai gostar de séries de TV? De escrever? Será que vai se propor a escrever um texto sobre os outros e acabar fazendo tudo ser sobre ele com a natureza narcisista de quem caminha com o cachorro olhando para os vidros dos prédios para se enxergar tal qual um peixe num aquário? Espero que não. Deve ser irritante conhecer alguém assim. Não desejo isso a… Poxa, não peguei o nome dela. Será que é Cristina? Desço a rampa. No sentido contrário, alguém sobe vários carrinhos. Eu penso na moça grávida e torço por ela. Para que alguém além do bebê dela grite por seu nome. Que ela se torne uma das entidades que salva a vida das pessoas. E que ganhe sua versão de loteria. Torço por ela e torço pelos outros. Então, paro por um instante e esqueço deles. A banca de revista tá aberta. Massa. Deve ter algum gibi legal lá.

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