Três perguntas

Cesar Filho
10 min readAug 28, 2022

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Quando te conheci, eu estava com o cabelo molhado. Não lembrava daquela ocasião, mas pensei nela ao sentar de frente para o computador. Eu devorava uma barra de chocolate e meu cachorro fixava no doce os olhos de pidão que brilhavam como jabuticabas maduras. Chovia muito fora do apartamento. Nas fotos que tenho daquele dia, não estávamos a sós. Meus pais e família sorriam para a câmera e eu usava uma camisa branca e não parecia particularmente feliz ou triste. Simplesmente estava lá. Esse me parecia ser o estado da minha vida nos últimos tempos. Olhava ao redor e simplesmente estava por aqui. Não de uma forma boa.

Depois de te conhecer, passei a visitar sua casa. Gostava dela. Minha família me levou para conhecê-la. O lugar era perfumado, sempre com tudo no lugar de forma religiosa. Gostava muito dos quadros, mesmo que alguns tivessem imagens meio perturbadoras, se pararmos para pensar. As pessoas da sua casa sempre foram educadas. As visitas também. Em sua maioria, claro. Sempre tinha um ou outro para atrapalhar. Não é engraçado isso? Sempre tem um. E quando não houver um, pode ter certeza que haverá outro. Não lembrava qual era a idade, mas em uma das trinta e uma que tenho, eu comecei a te ver sempre. Fosse nas visitas, algumas na presença de outros amigos nossos, ou em conversas. Minha mãe se certificava sempre disso. Já conversou com ele hoje?. Já. Caso contrário, conversávamos. Às vezes, ela e minha irmã também queriam falar com você.

Eu me divertia nos nossos encontros. Havia muita música, as outras crianças eram legais. Isso me fazia feliz. Tão feliz quanto uma criança poderia ser de verdade. Qualquer que seja a noção de felicidade que elas tenham e que eu tinha. Certa vez, estava a caminho da sua casa — ou voltando dela — e a chuva perseguiu minha mãe, minha irmã e eu. Lembrei disso ao ouvir a água que batia na varanda, pesada como um castigo. O chocolate acabou e meu cachorro desistiu e foi para o sofá preto da minha sala de móveis estranhos. Levantei e fui servir café. Abri a garrafa branca que me serve litros todos os dias e deixei o líquido escuro cair fervente na caneca preta enquanto a segurava com a mão até que o calor começasse a doer um pouco. Nossa relação tinha um pouco a ver com isso. Ter chegado a essa conclusão à medida em que eu cresci foi a pior parte. Sentei de volta à mesa e, com isso em mente, abri o Photoshop para trabalhar.

A imagem que eu estava editando precisava de um pouco mais de saturação. Carros precisam brilhar bem para chamarem atenção dos clientes em potencial. O meu problema não era te amar. Mas o fato de que o meu amor por você nunca foi algo que precisou ser conquistado. Quando somos ensinados que precisamos amar algo ou alguém, aquela pessoa ou coisa corre o risco de ver o sentimento virar a equação de Torricelli que a gente decorava na véspera da prova. Não queria que você me levasse a mal, mas sempre odiei estudar Física. A felicidade que eu tinha com você ficou vazia. Passamos a não nos reunir mais com nossos amigos, os quadros da sua casa deixaram de ser algo que me despertava interesse em também virar pintor e se transformaram na paisagem de uma viagem que eu só queria que acabasse. O cliente respondeu alguma demanda no e-mail e era melhor eu checar. Pensei naquela ideia de que podemos amar alguém sem gostar da pessoa e talvez tenha sido isso que aconteceu. Porque a pior parte de tudo, da forma como a nossa relação se deteriorou, foi eu não acreditar mais em você. E eu não acredito. Talvez se nós pudéssemos conversar de verdade, talvez aí eu acreditaria mais.

- Então, fale comigo.

A voz ecoou pela sala. Olhei em volta e não vi ninguém. Meu cachorro me olhou como se eu fosse maluco. O café, agora morno, esperava por outro gole.

- Aqui, cara. Fala aqui comigo.

Levantei, fui para a varanda, olhei para a rua, fui para o quarto, olhei para a cama. Eu sabia que não tinha ninguém. Moro sozinho desde 2019. Foi como quando precisamos checar se a porta está fechada — mesmo sabendo que obviamente está. O apartamento jazia em silêncio mais uma vez quando voltei para a cadeira. Olhei para a tela do computador e o carro continuava me encarando com o layout inacabado em sua volta. Eu provavelmente estava ficando maluco.

- Cesar. Sou eu.

Puta que o pariu, pensei. Quem estava me chamando?

- Aqui, ó. Aqui. Desce aqui no diálogo.

- … — eu olhei para o lado, sem falar nada. Lá estava ele, sentado no sofá.

- Eu estou aqui. Pode falar.

- Que porra é essa?

- Não fala palavrão, por favor.

- Quem é você?

- Você sabe.

- Não.

- Sim.

- Não.

- Sim.

- Mas não tem como você ser você se quem está escrevendo sou eu. Se você é você, então você… — encostei na cadeira, ainda sem acreditar.

- À sua imagem e semelhança.

- Pera, isso tá meio confuso.

- Vai piorar.

- Você não pode estar aqui.

- Muita coisa pode não ser e elas meio que acabam sendo, tipo as últimas temporadas de Game of Thrones.

- Deus assiste Game of Thrones?

- Eu descanso no sétimo dia, lembra?

- Então tem gente morrendo de fome e Deus tá vendo TV?

- Não é TV, é HBO.

- Engraçadinho.

- O que você quer?

- Como assim?

- Você escreveu um parágrafo atrás do outro sobre como me amar se transformou numa equação que você precisa enfiar no cérebro à força e sobre como não acredita mais em mim, então eu desci das nuvens e aqui estou. — ele pausou, olhou para mim e sorriu o meu sorriso. — O que você quer? Voltar a acreditar em mim?

Acreditei nele por metade da minha vida. Não era disso que eu precisava. Mas do que é que um homem precisa ao se encontrar com Deus?

- O que você quer saber? — ele perguntou.

O que eu quero saber? O que alguém gostaria de saber ao ter acesso a todas as respostas? Estamos sozinhos no universo? Quando o mundo vai acabar? O Brasil vai ganhar o hexa? Por que homens adultos insistem em usar sungas dentro de supermercados?

- Calma. — ele disse. — Vamo lá, eu te concedo três perguntas.

- Três? — eu ri. — Como um gênio da lâmpada? Você virou um gênio da lâmpada agora?

- Irmão, eu num tenho todo o tempo do mundo não, cara. Tem muito problema por aí, tão tentando trazer a moda da cintura alta de volta, tá ligado? Vamo focar aqui. Vai lá, primeira pergunta.

- Certo. — eu pauso por um, dois, três, quatro segundos. — Qual é o sentido disso?

- Disso o quê?

- Disso. De tudo. Da vida. Por que eu tô aqui? O que a gente tá fazendo aqui?

- Isso importa?

- Você tá respondendo uma pergunta com outra pergunta?

- Estou te irritando?

- Para, bicho.

- Ok. — ele riu. — Você quer uma resposta sincera?

- Sim.

Ele respira fundo, ajusta a coluna e responde:

- Eu não sei.

- Como assim você não sabe? — eu disse, um pouco perplexo.

- Eu só construí o ônibus, cara. São vocês que estão dirigindo. A caminho de um desfiladeiro, aparentemente, mas estão. Não precisa ter sentido. Você não precisa ficar pensando no motivo pelo qual as ramificações da folha de uma árvore parecem as veias que você tem dentro do seu corpo e encontrar conexões, coincidências e sinais em todo lugar que anda. Eu não te criei pra te encaixar no sentido da vida, saca? Já dei a aurora boreal, o resto é com vocês. Não tem sentido. É caos. Puro e inacabável caos.

- Meu Deus do céu.

- Diga.

- Não, foi só uma exclamação.

O silêncio caiu no chão da minha sala como a Torre Norte às dez e vinte e oito da manhã, mas com menos cobertura da mídia.

- Você devia rever isso. Algumas pessoas podem achar insensível.

- Essas pessoas não estão aqui. — eu respondi.

- Eu estou.

- Você estava lá?

- Só não acho que é a melhor das metáforas. — ele disse depois de rir.

- Quer falar de metáforas? Vamo ler a Bíblia.

- Não tenho nada a ver com isso.

- Isentão.

- Qual é a segunda pergunta?

A pergunta caiu no chão da minha sala como um ovo que quebra e espalha sujeira. Ele riu da nova metáfora e olhei em sua direção, sentado no sofá. Ele fez carinho no Calvin, que me olhou com a cara que me dá motivo para não sentir o que sentia.

- Tô sentindo algo no peito. — eu disse.

- Você devia maneirar no café.

- Eu sei.

Fiz silêncio por mais alguns segundos para procurar as palavras. Isso sempre me foi um problema. Fosse sentado no fundo da sala de aula, no meio de uma discussão familiar, na mesa com os amigos ou em um primeiro encontro. Não foi até a pandemia tirar de mim a possibilidade de ter interações constrangedoras com outras pessoas que eu tive a vontade de abrir a boca e achar que o que sairia dela ia importar de alguma forma, mesmo que eu o fizesse quando já estava acostumado com alguém. A palavra escrita, no entanto, me proporciona outro tipo de guerra. Com ela, a busca sempre veio com a diversão que é usar a mecânica de um teclado QWERTY para decidir qual palavra você vai ler agora. Se vai ser essa, essa ou essa. De qualquer maneira, fosse na inabilidade de falar ou na paixão de escrever, a palavra vivia no meu pensamento. E quando as palavras passam a fazer parte do nosso pensamento, elas fazem parte de nós e não há nada a fazer. Ou foi isso que li em um texto recentemente.

Paciente, ele esperou que eu terminasse meu devaneio. Eu olhei para ele, ele olhou para mim. A segunda pergunta a pairar pelo ar, sem sair da minha cabeça. Eu sei qual é. Ele sabe qual é. O Calvin me olha estranho.

- Não quero terminar o Por Onde Andei. — eu disse, enfim. — Minto. Eu quero. Sei que me faria feliz. Não exatamente o ato de terminar, mas o fato de ter terminado. Não sinto vontade, sequer sei qual foi a última vez que eu desenhei. Tem uma tarefa referente a uma das tirinhas que me restam da série pulando na minha lista de semana em semana o ano inteiro. — eu olhei para o Photoshop na tela do computador e fechei o programa porque não queria que as cores que usava nos personagens me vissem dizendo isso. Continuei. — Um sábado desses, fui no aniversário de uma amiga. No domingo, acordei e tentei lembrar da noite anterior, como se eu tivesse bebido muito. Como se tivesse acordado de ressaca. Mas eu mal bebi. Passei a noite sóbrio como uma freira na Quaresma. Aí eu notei que o que eu queria era lembrar se me diverti ou não. Se fiz esse esforço depois de uma semana de merda. É uma checklist, entende? — eu parei para pensar e soltei uma risada. — Teve outro dia, uma segunda, que eu tava largado na cama pra descansar depois de voltar de uma viagem que eu fiz a Recife. Tipo, é bem aqui do lado, mas quatro horas dentro dum ônibus é foda. — ele me olhou e reprovou o palavrão. — Desculpa. É que tira a paciência de qualquer Jó. Daí, do nada, escutei uns batuques. Fiquei, “oxe, o que tá acontecendo?”. Daí, no WhatsApp, sempre no WhatsApp, uma amiga falou que o energúmeno da república tava lá dando entrevista no Jornal Nacional ou algo do tipo. Por isso, as batucadas nas panelas. E no Instagram, começou a rolar uma sequência de stories indignados com qualquer que tenha sido a bobajada que ele tenha dito. Eu só pude rir, bicho. Sem saber como a galera ainda não se cansou de se indignar ou até mesmo de se surpreender. Não sei nem pra que tá tendo campanha política. Num vai ser a essa altura do jogo que o juiz vai trocar de sentença, até porque tem tanto vídeo dos últimos anos pro VAR analisar que o treco vai ter um troço e pifar antes do fim. — abaixei a cabeça, com os cotovelos apoiados nos joelhos. — Tô exagerando, tá? Calma. O negócio é que eu entendo a indignação, concordo com ela e tô preocupado com o que vai sobrar desse país depois que terminarem de mastigá-lo. Só que me vem essa apatia. Isso eu não preciso parar pra pensar se senti ou não. É aí que tá. O xis da questão. É um dia após o outro, após o outro, após o outro. Check, check, check. E no aniversário dela, minha amiga me perguntou se eu estava bem mais de uma vez. E eu disse que sim. Mas eu não menti de forma consciente. — peguei a caneca de café com a mão, o líquido já mais frio do que morno. — Dias escapando. Pessoas escapando. Não qualquer pessoa, pessoas importantes. Vitais. — um, dois, três, quatro. — Eu nem lembro a última vez que falei com a ▬▬▬. Tava até lembrando de quanto tempo faz que nos conhecemos.

- Por que não fala? — ele perguntou com a voz serena de um pai preocupado.

- Pra quê? Pra pedir desculpa? É disso que o mundo tá precisando? Mais um homem pedindo desculpa?

- Não deixe a banalidade com a qual as pessoas levam a vida te impedir de fazer o que você sente que precisa fazer.

Olhei para ele e fiz uma careta de impressionado.

- Isso foi muito profundo.

- Tecnicamente, eu sou você e é você que tá escrevendo, então não é muito humilde da sua parte apontar isso.

- Desculpa. — eu pausei e ri. — É isso, né? Pedir desculpa. De novo. Pra outra pessoa. Metade do tempo, eu nem sei por que eu tô me desculpando.

- Qual é a segunda pergunta, Cesar?

Olhei para ele, sem acreditar que falaria aquelas palavras.

- Por que eu sou assim? Qual é o problema? — eu apoiei o cotovelo na mesa e levei a mão à minha testa com um sorriso no rosto. — Quando te conheci, eu não precisava de muito pra ser feliz. Talvez por isso acreditasse em você.

- Meio gratuito. — ele protestou.

- Desculpe. — eu cruzei os braços e encostei na cadeira. — Eu já assisti alguém dizer essa frase numa série, já a escrevi em um dos meus contos, mas vou repetir. Talvez eu só seja eu. E não há cura pra isso. — olhei para ele. — E aí? Você é o cara das respostas. Tem alguma pra mim?

O alarme do meu celular berrou em cima da mesa com a conveniência que só a ficção produz. Eu tirei um comprimido de uma cartela que estava logo ao lado dele, levantei e fui pegar um copo de água. Depois de tomá-lo, tirei uma sacola plástica pequena de dentro de uma maior e a coloquei no bolso traseiro da bermuda preta.

- Preciso andar com o Calvin.

O cachorro saiu do sofá, correu até mim e pulou ao meu redor até que eu colocasse nele a coleira amarela do Snoopy.

- Valeu por ter vindo. Foi bom colocar o papo em dia. — eu disse e ele apenas olhou para mim enquanto eu abria a porta vermelha.

Ele sorriu e perguntou:

- Qual é a terceira pergunta?

Eu olhei para ele, ainda sentado no sofá, com o longo corredor escuro do meu andar logo atrás de mim. Calvin deu mais um pulo e chamou minha atenção. Eu também sorri e ao fechar a porta, perguntei:

- Por que cachorro não pode comer chocolate?

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