Vinte e nove de dezembro

Cesar Filho
4 min readMar 21, 2023

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Lembro do frio daquele piso laranja. Estamos sentados nele com sorrisos nos rostos e olhamos para a lente da câmera nas mãos seja lá de quem for. Olhamos para mim sempre que pego a fotografia que carrego há tanto tempo. Os dois naquela casa, aquela onde crescemos, provavelmente esperando que mainha chegue, lave a garagem e encha o piso laranja de sabão para que a gente possa escorregar para cima e para baixo. Antes de tudo acontecer e sem saber que estava tudo acontecendo. Entre aquelas paredes onde brigamos por causa de brinquedos quebrados e para decidir quem pegava o pote do iogurte com o desenho do sol. E depois, mais crescidos, para assistir televisão no esquema montado pela tia Lane, já que ela era mais velha que a gente. Eu assistia Dragon Ball, ela assistia Disk MTV e depois o aparelho era todo e completamente seu — mas aí já era tarde porque o painho estava em casa para ver o jornal que a gente não entendia. A casa que sem o vinte e nove de dezembro teria sido mais triste e mais vazia. Mesmo que em frente a ela eu tenha quebrado o seu dente.

Lembro das paredes brancas do apartamento onde fomos parar depois que tudo acabou. Depois de todo choro derramado, toda voz exaltada, todo cigarro fumado e vidro quebrado. Um lugar pequeno, mas nosso. Não tínhamos camas na primeira noite, então dormimos os três no chão. Vocês duas e eu, com colchões na porta de cada quarto e com a janela aberta que dispensava ventilador. Eu adorava aquele lugar. Ainda posso sentir o cheiro de tinta que aquelas paredes novas tinham, mesmo com alguns dos meus piores momentos a tomar forma entre elas. Os anos anteriores tinham sido tão caóticos que aquilo tudo não importava no grande frigir dos ovos. Tínhamos sobrevivido à tempestade, você e eu. E a calmaria veio, como ela costuma vir, com dias vazios, mesmo quando estavam cheios. Eu tentava me encaixar no mundo ao desenhar personagens, traduzir legendas e escrever histórias. Queria fazer sentido de um futuro que nunca seria o meu em salas de cursinho pré-vestibular e postos de um primeiro emprego que acabou por durar um piscar de olhos. As poucas memórias que tenho dali— e eu tento não ter muitas — vem com tardes em que eu ficava deitado no sofá olhando para a porta e esperando que o barulho das suas chaves ecoasse no corredor. Até que isso acontecesse, minha oficina do diabo criava cenários em que você tinha sido assaltada, sequestrada, abduzida e que estava mortinha da silva. Aí, as chaves ecoavam e eu ficava decepcionado por não poder mais fingir que era um jovem rico que tinha um apartamento só pra ele. Mas tudo bem. A minha companheira de trincheira estava de volta. Éramos nós dois, sobrevivendo como nunca antes, como naquele Ano Novo do interior em que choramos abraçados porque eles dois não estavam com a gente. Quando prometemos estar, entre tempestades e calmaria, sempre um com o outro.

Lembro da rede verde que ganhamos depois de sair das asas das nossas corujas. A princípio habitando aquela varanda laranja que dividimos com uma tampinha e um cachorro. Seguimos a sobreviver, dessa vez com nossos próprios pés. Quem imaginaria? Uma dupla de preguiçosos que jantava miojo não pelos tomates da Turma da Mônica, mas pela preguiça de fazer qualquer outra coisa passaria a se virar sozinha poucos anos depois. A preguiça, claro, continuava de vez em quando porque velhos hábitos são como um bom samba e o Bruce Willis. A diferença era que os boletos tornavam tudo mais válido e menos adolescente. Foi a primeira vez que o motivo do nosso companheirismo era justamente isso: nosso. Sem guerras, sem gritaria. Não deles, ao menos. Então, você viu o espaço em sua volta e decidiu que precisava de mais. A nossa casa virou minha e você achou uma que fosse sua. Porque as coisas não acontecem por acaso. Precisávamos amadurecer para além de nós mesmos e colocar certos pingos em certos is. Mas como aquelas que vieram antes de você, suas asas de coruja me receberam em um dos piores momentos da minha vida. E sua casa virou nossa de novo.

O que não lembro é desse piso de taco. Nem da parede cinza da sala ou das ladeiras dessa cidade nova. Não lembro de só poder te ver num avatar redondo de um aplicativo ou de não ter como te convidar para ir comer um churrasquinho excelente com um caldinho duvidoso. Não lembro dessa distância, nem mesmo quando você decidiu ver o que tinha fora da nossa casa. Agora eu faço o que sempre tento: o melhor que posso. Deixo espaço para o que virá, sempre com essas memórias em um dos maiores bolsos da bagagem da minha mente.

Tipo a de quando a gente brincava durante o castigo depois de causá-lo com uma briga.

Ou ia até o último andar do colégio para lanchar juntos.

Ou comprava pizza de caixa para ver séries.

Ou tomava cerveja gelada para regar o tempo.

Trago cada uma delas porque é assim que trago um pedaço de você. E, com sorte, te deixo um pedaço de mim. Afinal de contas, tenho uma promessa para cumprir.

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